Era uma sexta-feira de Páscoa,
Eles estavam felizes, compraram seus peixes e iriam fazer uma boa refeição.
Era meio-dia, a mesa estava recheada de pratos deliciosos. O tradicional peixe estava preparado, o arroz, a sobremesa estava na geladeira, a bebida sem álcool... Sim, uma mesa pronta para ser degustada.
As visitas chegam, os sobrinhos à correr pela casa, os irmãos vão se acomodando...
Eles sentam-se. Todos estavam ansiosos para comer.
Na hora de comer, um dos convidados, cristão que sempre fora, se pronunciou então:
- Vamos fazer uma oração, vamos agradecer a Deus por este alimento e por este momento?
Então, o dono da casa, que havia passado horas e dias preparando este almoço para, com muita alegria, poder receber sua família e as crianças que tanto ama, respondeu:
- Desculpe, não posso aceitar isto.
- Mas hoje é Páscoa, não é possível que você não esteja comovido com este momento tão importante, em que celebramos o fato mais importante de nossa história e de nossa fé?
- Justamente sobre isto que gostaria de conversar. Não posso pensar em agradecer a Deus enquanto sei que milhares de pessoas estão sem ter o que comer.
- Mas nós precisamos ser gratos a Deus. Precisamos reverenciá-lo em todo o tempo, diante de qualquer circunstância, não podemos nos esquecer Dele.
- Por este motivo que hoje gostaria de agradecer a vocês por virem a nossa casa almoçar conosco. Por tantas vezes durante o ano tenho pensado nesse momento, várias vezes passei a sexta-feira santa na igreja ou mesmo tentando entender melhor a Deus. Entretanto, a conclusão a que chego neste momento é que não posso aceitar essa condição. Não posso aceitar fazer um almoço como este e agradecer a Deus! Também não posso aceitar que saiamos, nessa sexta-feira, para dar alimentos aos pobres.
- Mas meu irmão, me diga então, não podemos agradecer a Deus por este momento? Temos que adorá-lo em todo o tempo! Qual é o problema?
- O problema é que não posso envolver Deus nisso. Não acho que temos tudo isso para comer, por conta de Deus. Assim como não acho que as pessoas que não têm o que comer, estão assim por causa de Deus. Deus é uma coisa, nós e nossa vida somos outra. E é isso que eu quero que nossas crianças aprendam. Espero que nessa sexta-feira possamos ser mais coerentes e nos alegrarmos com esse momento. Apenas com este momento. Deus que fique fora disso.
E, diante dessa circunstância, todos comeram, beberam, deram risadas. As crianças correram pela casa. Depois de um tempo, os pais sentaram e ficaram vendo televisão. Uma das mães acompanhou o filho a subir na árvore. Mas foi assim que eles ficaram, assim que passaram, assim que desfrutaram essa sexta-feira santa.
Eu lembro como se fosse hoje. Meu pai falando essas coisas. Minha mãe olhava pra ele e pra baixo, não sabia como se comportar - mas ela se calou. E depois dessa páscoa, dessa sexta-feira santa, todas as seguintes passaram a ser muito diferentes. Ninguém mais queria ir em nossa casa, nessa data, mas nos convidavam para almoçar com eles em outros locais só que meus pais nunca aceitaram.
Nessa noite, na hora de dormir, minha mãe me pôs na cama e eu lhe perguntei se o papai do céu tinha ficado triste porque não lembramos do seu filho assim como eles ficam tristes quando os parentes de longe vem nos visitar e não lembram de trazer presente pra gente. Minha mãe me disse que lembrar do filho do papai do céu não é a mesma coisa, porque se pra gente trazer presentes é lembrar das crianças, pro papai do céu é cuidar dos que sofrem, de qualquer forma. Cada vez que nos esforçamos pelas pessoas que sofrem, estamos lembrando do filho do papai do céu. (risos).
Como lembro dessas palavras com detalhes!
Hoje eu percebo que minha mãe estava tentando me mostrar que nenhum ritual tem, por si só, valor. Que o valor das pessoas está nas atitudes das pessoas e não na realização de rituais.
Por conta disso, desde meus 15 anos, nunca mais passei a páscoa com minha família. Entendi que a vida é mais do que a escola me ensinava e que eu precisava dar valor a todas as pessoas! Por isso, comecei aos 15 anos a tocar com uma banda - pensávamos transmitir ideias revolucionárias! - e aos 18 anos, na faculdade, comecei a me envolver com movimentos sociais e tentei direcionar minha carreira para algo mais coerente com essa forma de pensar.
As pessoas olham com pesar o fato de eu trabalhar com essas coisas mais alternativas, mas um dia continuo a falar sobre isso mais detalhadamente...