terça-feira, 2 de setembro de 2014

De corpo e alma.

"Um corpo quer outro corpo. 
Uma alma quer outra alma e seu corpo."

Como, de repente, sentir seu corpo todo num contínuo ressoar de notas, por vezes tortas, por vezes mortas, agora muito mais vivas. Eis que ressurge uma paz ainda indescritível desses poros e desse sangue que muitas vezes parecia dizer coisas incompreensíveis.

"Esse excesso de realidade me confunde."

Não mais que isso, por vezes tudo se confunde, não se sabe quem sou eu ou quem és tu, tudo somos nós e nós nos perdemos. Até aquele limite em que gritamos, choramos, caçoamos. Da vida e de tudo ao nosso redor, que somos nós e são os outros simultaneamente. É quando nos juntamos e olhamos a realidade, a nossa e de mais ninguém. Mesmo nessa confusão, em que por fim concluímos que na verdade nada somos, nem estamos, não fomos, nem seremos, senão que somos tudo em todos e em nós mesmos. O eu e o tu não existem, senão nossos corpos. Apenas corpos, que num tocar de múltiplos acordes se encontram e criam as mais variadas harmonias. Se encontram porque são inteiros. São corpoS.

"As casas baixas, as pessoas pobres,
e o sol da tarde,
imaginai o que era o sol da tarde
sobre a nossa fragilidade."


Daqueles corpos então frágeis se firmou o sol. Como num dia de primavera clareando e aquecendo, vendo suas flores brotarem repentinamente, sentindo o calor e o suor. É como se corpos novos estivessem a nascer também, ainda que frágeis mas vivazes.

"Vinha com Jonathan
pela rua mais torta da cidade.
O Caminho do Céu."


Quanto mais torta a rua que construíamos, tanto mais cegos estávamos. Cegos de tanto ver essa dura realidade - e não ver a outra. Caminhando, tropeçando, jogando um ao outro no buraco. Vendo carros puxando uns aos outros. Olhando o céu clarear e escurecer, às vezes nem o clarear. Tanto nos abraçar, beijar, chorar. Em alguns momentos, o caminhar sem rumo era o que mais importava. Às vezes, o trilhar rumos diferentes era o que se colocava. Guiados por nossos copos tortos e frágeis e que dessa vez, agora, se mostram vivos e fortes, naquilo que se pode chamar de paz. De corpo e alma.
(Em itálico, Adélia Prado)